domingo, 8 de dezembro de 2013

De notável faro


"Nunca quiseram ouvir o meu lado nessa história. Por isso, Vossa Excelência, senhores do júri, prezados ouvintes, fico aliviado em poder, finalmente, prestar os devidos esclarecimentos diante dos senhores e senhoras e quem sabe, assim, escapar desta enorme injustiça que alguns aqui tentaram cometer, rebaixando-me a uma condição equivocada de culpa por um crime que não cometi. Ficam aqui os meus sinceros agradecimentos a todos os presentes.

Pois bem. No dia 20 de fevereiro de 2013, estava, como de costume, passeando calmamente pelo bosque que fica na entrada oeste da floresta, área onde costumo descansar, fazer uma siesta, aproveitar um pouco da sombras das belas mangueiras – que a esta época, diga-se, então frondosas, cheirosas. Manga é a minha fruta preferida, pelo seu suco, seu aroma, mas isso não vem ao caso. O caso é que, nessa data referida, estava preparando meu cantinho embaixo de um pé de manga rosa, logo na entrada do bosque, quando senti o cheiro – vocês devem ter conhecimento do meu notável faro – do perfume mais delicioso que minhas narinas tiveram o prazer, diria gozo, de sentir. Uma mistura perfeita de noz moscada, bergamota e canela. Respirei fundo mais uma vez, para que não houvesse erro ou preconceitos da minha parte, mas não, meu olfato não deixaria que me enganasse. Também senti sândalo. Desfiz o meu quase-ninho e pulei, na tentativa de não ser visto, para trás de um pequeno arbusto e lá permaneci imóvel enquanto pude. Entre as folhagens, consegui ver de onde vinha a fragrância. Uma menina-pluma passeava saltitante entre as flores do campo e, note-se, ainda assim o seu perfume me atingia em cheio nos pulmões e coração, que a esta altura, disparado, me dava até medo de explodir em pedaços. Minha vista ficou embaçada durante segundos, uma serosa central passageira, pontos negros comprometendo o que estava ao redor, mas fixava cuidadosamente o foco nos seus saltos e passos leves e a via puxar flores do bosque, cheirá-las, rodopiar mais um pouco, saltitar novamente e assim delinear, entre os verdes, uma mancha imaginária – e colorida – do seu caminho. Eu estava hipnotizado, senhores, desmanteladamente entregue à sorte daquela pequena pluma, ora.

Minha vontade inicial, no misto de vergonha – sim, pois beleza, quando muita, envergonha o feio – e fúria – porque tamanha leveza despertava-me a ira natural dos instintos – foi permanecer inerte, coisa que não consegui. Fui seguindo os passos seus e ela rodopiava, saltitava, cantarolava, beliscava meu coração sem tocar-me, um inferno feliz, logo adiante dos meus próprios olhos. E assim a segui, parecia uma eternidade, um filme romeno, um prato que se espera sair da cozinha vietnamita, a decolagem de um foguete, um tempo sem relógio acontecendo em velocidade mínima. Eu via todos os seus detalhes e via como por baixo do seu pequeno chapéu vermelho escondia-se o mais belo sorriso que jamais havia visto. Um sorriso com menos dentes e mais lábios, igualmente vermelhos, e um vestido florido, lindo, leve, acentuava cada parte do corpo dela e eu, esquivando-me e revelando-me um perverso voyeur florestal, que coisa mais abominável para um velho como eu. 

Peço desculpas pela narrativa prolixa, mas dito isso, chego ao que nos interessa. Sim, eu estive à porta daquele pequeno chalé no meio do mato – jamais estivera ali, quero esclarecer. E, sim, vi quando a menina linda e saltitante bateu por três vezes na porta, suavemente, até que uma senhora de olhos azuis e cabelos lilás abriu um sorriso, ao abrir, também, a porta. Vi que se abraçaram. Vi, de longe, a saia da menina-pluma, ao vento, entrando na pequena casa. Mas foi só, senhores. Eu jamais entrei naquele recinto. E jamais pensaria em comer aquela pobre senhora. Ao menos em relação àquela senhora, lhes garanto: jamais pensaria em comê-la."

Pedro FonsecaHabeas Corpus


*









* porque contos de fadas pertencem à eternidade, são como os filmes romenos, um prato que se espera sair da cozinha vietnamita, a decolagem de um foguete, um tempo sem relógio acontecendo em velocidade mínima...
** Loja de História é um projeto criado pelo escritor e ex-publicitário, Pedro Fonseca - ele recebe "doações" de imagens aleatórias e as "troca" por contos que ele desenvolve a partir das imagens.
*** ilustração: Noma Bar

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Hoje, aqui, já, neste momento


Por que 
não vens agora, que te quero 
E adias esta urgência? 
Prometes-me o futuro e eu desespero 
O futuro é o disfarce da impotência. 

Hoje, aqui, já, neste momento, 
Ou nunca mais. 
A sombra do alento é o desalento 
O desejo o limite dos mortais.



Miguel Torga




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* e a lógica transcende - o desejo que nos limita é também o que nos faz imortais.

já não é hoje?
não é aquioje?

já foi ontem?
será amanhã?
já quandonde foi?
quandonde será?
eu queria um jázinho que fosse
aquijá
tuoje aquijá.
Alexandre O'Neill

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Feeling this way, these days... in the mood for love


Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhamos tardamos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficamos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde demais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos noturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!



José Carlos Ary dos Santos



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* na imagem, cartaz chinês do filme Amor à Flor da Pele (In the Mood for Love) de Wong Kar Wai, 2000.
** update: porque não informei propriamente que José Carlos Ary dos Santos tecia suas poesias para composições musicais, assim como Chico e Caetano, dentre tantos.