quinta-feira, 29 de agosto de 2013

ain't got no

 

"Deixa-me dizer o que eu tenho
E ninguém me vai tirar
A menos que eu queira:

Tenho meu cabelo, minha cabeça
Meu cérebro, meus ouvidos
Meus olhos, meu nariz
E a minha boca - tenho meu sorriso

Minha língua, meu queixo
Meu pescoço, meus seios
Meu coração, minha alma
Minhas costas
E meu sexo

Tenho meus braços, minhas mãos
Meus dedos, minhas pernas
Meus pés, dedos dos pés
E o meu fígado
Tenho o meu sangue

Eu tenho vida - eu tenho vidas

Tenho dores de cabeça e dores de dente,
E momentos ruins como você

Eu tenho liberdade
E tenho vida"













* das impressões que me ficaram da juventude, lembro de ouvir Nina e cantar com ela, a voz firme: "i got my arms, my hands, my fingers, my legs, i got my sex...". vieram os cabelos brancos e eu chafurdei na burocracia dos dias. mesmo sem coragem para afirmar, passei a ver estupidez nos que acreditavam serem livres. 

"o homem não é livre, nem ao nascer, nem no viver e nem ao morrer. a única coisa 
livre que existe é a vontade de o ser." [Ramón Sampedro]

outro dia alguém me disse que eu era sábia, por uma insignificância que escrevi que agora não me lembro. veio-me a imagem do tipo de muita idade, cabelos desgrenhados, olhar manso e sorriso monalístico. os sábios, no imaginário popular, não só sabem muito mas são extremamente felizes. na vida real, penso que não existem nem os sábios, nem os extremamente felizes. mas gostaria de acreditar nos livres e vê-los por aí, estupidamente felizes.


"o que eu tenho, as pessoas podem comprar. o que eu sou, as pessoas não podem ser". [Costanza Pascolato]

** desenvolvi um método muito particular e nada ortodoxo de leitura corporal: leio nos corpos nus a vida que lhes ficou impressa. em Nina Simone, por exemplo, a nudez indica dúvida, desencontro e desconfiança - nas pessoas, na liberdade, na própria felicidade. e força, uma força descomunal, conseguida muito provavelmente, através da resistência. não se iludia. mas acreditava. e essa foi sua fortuna. 

"às vezes, nossos maiores presentes são aquilo que não nos dão, niña". [Erica Bauermeister]

domingo, 4 de agosto de 2013

O inevitável


"Inevitável. A palavra certa é inevitável e lembro-me que foi essa a palavra que me ocorreu enquanto te abraçava e tu me abraçavas a mim. Era forçoso que assim fosse, não porque o quisesses tu ou o desejasse eu. Não porque não te amasse, ou porque não me quisesses tu. Simplesmente tinha de acabar, de uma forma ou de outra e, sendo assim, antes terminasse com um abraço. Mas tinha que acabar. São coisas que não se explicam, ou que, tendo explicação, não podem justificar-se recorrendo às equações da lógica. Eu amo-te, tu amas-me; logo: separamo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo que ser assim e não podia ser de outra maneira. E, se calhar, tinhas razão – o amor é mesmo para os parvos."


  
Manuel Jorge Marmelo, in O Amor é para os parvos


*








* na vastidão a perder de vista de uma cama, há dois corpos encolhidos à procura de dono. como dois transeuntes que se encontram na faixa de pedestres: cada um ao lado do outro e cada um a milhas do outro.
"gostava de amar-te como da primeira vez, saber o teu toque como sei de Deus, sentir que os teus lábios me contavam a vida."

"no começo havia o espaço entre nós cheio de palavras: tu contavas o que sentias, o que fazias; eu contava o que sentia, o que fazia. e depois chegava o amor com a naturalidade com que agora chega o sono. em que ponto de nós o amor foi substituído por sono?"
deitaram-se com palavras por dizer e ambos sabiam que o final era já ali - nada a dizer quando há nada a sentir.
"o pior do amor é a recordação do amor: saber que já foi tão grande, saber que já foi tão intenso, saber que já abalou todos os alicerces e que agora nem o sexo é capaz de levantar. o pior do amor é o momento em que ele, não acabando, está acabado."
ela abraça-o, tenta a tentativa absurda de continuar tudo como dantes.
"antigamente o abraço bastava. antigamente apertava-te o abraço e tudo o resto ficava espremido, perdido na asfixia proibida do que nos unia. antigamente éramos do tamanho do nosso abraço."
ele deixa-se abraçar, simula o seu próprio abraço. e deixa-se adormecer pela derrota.
"queria que houvesse outra vez a sensação incorruptível de precisar-te em mim. queria outra vez o meu corpo todo rendido à espera do teu. queria sentir-me vivo para te sentir viver."
ela desiste. sente que é a única a tentar e deixa-se resignar. vira-se para o lado e dedica-se a chorar. vira-se para o outro lado e dedica-se a recordar.
e os olhos fecham, lado a lado. ele sonha com a mulher que nunca vai ter; ela sonha com o homem que já teve. e é assim que, sem o saberem, se têm pela última vez.
"amo-te, mas preciso acordar" – foi o que ele, pela manhã, cheio de coragem, teve a coragem de dizer.
"amo-te, mas já deixei de acreditar" – foi o único que ela, resignada, foi capaz de responder.

Pedro Chagas Freitas

sábado, 3 de agosto de 2013

Insônia [5]



Entre mim e o que em mim  
É o quem eu me suponho 
Corre um rio sem fim.
Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim





Fernando Pessoa, Entre o sono e sonhos


*








* a insônia bate à minha porta sem aviso prévio.
- chegaste?
- sabes que não falho.
- és monstruosa em tua irrepreensibilidade.
- eu sei. 
entra, instala-se no meu colo, nada de licenças, tudo muito certo. encaro-a como quem encara o espelho - o reflexo que hesito em enxergar, mas que enfim, aceito, como o céu que nos cobre a existência. olha-me com olhos de gente e escuta-me com gigantes ouvidos antropomórficos. pede-me que a ajude a compreender-se, mas faz-me pedidos estranhos, mais insanos do que a própria loucura...

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Take this waltz



"E o que é a vida senão uma dança à volta das relações amorosas? 

Preenchida, rotineiramente, entre o ponto de partida e o de chegada. 
Aquele meio entre os dois grandes momentos: nascimento e morte, paixão e fim. 

É neste entretanto, é nessa terra de ninguém suspensa, que as decisões se tomam. É aí que o medo ou o impulso de avançar são pesados e ponderados, vezes sem conta. É neste espaço de tempo que o circo se instala - feito malabaristas, tentamos manter as possibilidades no ar.

O estar entre coisas é uma consequência de estar vivo, mas ninguém fica aí muito tempo. A lembrança, nostálgica, do vento nos cabelos, da adrenalina que nos impulsionava à vida enquanto estávamos girando a uma velocidade alucinante, com a música muito alto e cores rápidas a deslizar por todo o lado, os corpos a serem lançados um contra o outro, sempre mais depressa, sempre mais alto, video killed the radio star, in my mind and in my car, we can't rewind we've gone to far, mais depressa, mais à roda, estonteante. Soltam-se os braços ao alto, a música sobe de tom e, subitamente, para, esgotou-se o tempo, parou a música, cessou o rodopiar, acenderam-se as luzes. 

Instala-se o medo e resta-nos encaracolar para dentro da nossa toca confortável. Até a dormência nos incomodar e ser preciso correr, mergulhar, decidir, para lá do medo, para lá da pena, para lá de tudo, porque é preciso, porque estar vivo é preciso. Mesmo que o outro nem tenha se dado conta que o chão estava a quebrar debaixo dos pés, porque é sempre assim: há quem prefira não enxergar o tsunami que se prepara a olhos nus. 

E então abraça-se a vertigem... é-se feliz na vertigem: take this waltz, take this waltz, take this waltz it's been dying for years e dança-se, roda-se, num espaço aberto e vazio, expectante de possibilidades, onde a cama é o centro de tudo e é usada, é mesmo muito usada, e à volta dela vai nascendo uma casa, uma cozinha, um abajur, uns cortinados, todos os adereços que tornam um espaço nosso e a cama lá no centro daquele open space, e a vida a girar à volta dela, a rodopiar à volta dela, depressa, take this waltz, take this waltz, até que a rotina toma conta de tudo - toma sempre conta de tudo porque não fomos desenhados para viver a rodopiar e a certa altura temos de parar. 

A rotina invade a casa, remete a cama para o canto e no centro instala-se um sofá e um televisor, um lugar de aconchego, com mantas e almofadas e é tempo de se segredarem coisas do coração ao ouvido, num conforto estagnado que é bom. 

E a vida avança (não rodopia) até ao dia em que o passado bate à porta e somos confrontados com aquilo que largamos lá para trás, os estragos que fizemos, o que de bom que lá ficou. 

É quando percebemos que a única solução é seguir em frente e que o carrossel somos nós que o giramos, somos nós que o procuramos, ele está lá, sempre à nossa espera, dentro de nós, take this waltz."




*







* é muito provável que a luta para garantir a sobrevivência do amor encontre suas mais duras batalhas entre os pequenos resmungos da troca de fraldas ou do ato de dar de mamar às três e quarenta e sete da manhã ou do bom e velho tédio; é mais provável que se encontre em pequenas traições ou deslizes ferinos da língua, que apresente o heroísmo cotidiano de fingir não ver mil pequenos hábitos irritantes. em suma, o amor é trabalho duro. e o final feliz não é o fim, mas o recomeço, ainda mais uma vez, o re-recomeço da insana função de manter vivo o amor. insana, sim... entretanto, quem é dono de loucura tão grande capaz de prescindir de uma boa história de amor? ** [Entre o Amor e a Paixão - "Take this Waltz", é um filme dirigido por Sarah Polley e estrelado por Michelle Williams e Seth Roger]