quarta-feira, 3 de julho de 2013

A Quinta História


"Esta história poderia chamar-se "As Estátuas". Outro nome possível é "O Assassinato". E também "Como Matar Baratas". Farei então três histórias verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única seriam mil e uma - se mil e uma páginas e mil e uma noites me dessem. 


A primeira, "Como Matar Baratas", começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se "O Assassinato". Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só abstratamente me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam a quem de direito e escalavam os canos do edifício até nosso lar. Foi na hora de fazer a mistura que elas se individualizaram. Comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa; um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Medo e rancor guiavam-me. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. A receita estava pronta. Tão bem espalhei o pó que mal se via, como para baratas espertas como eu. Horas depois, no silêncio da casa, imaginei-as subindo uma a uma até a área de serviço, onde o escuro dormia - só as tolhas alertas no varal. Acordei em sobressalto, era madrugada. Atravessei a cozinha. E no chão da área, lá estavam elas, duras. Durante a noite eu matara. Amanhecia. Um galo cantou.

A terceira história que ora se inicia é a das "Estátuas". Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Até o ponto em que, na madrugada seguinte, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta ainda está a área, na sua longa perspectiva de ladrilhos. E à luz primeira, num límpido arroxeado que distancia tudo, vejo no chão sombras e brancuras. Dezenas de estátuas de baratas espalham-se rígidas. Endurecidas de dentro pra fora. Testemunho o primeiro alvorecer de Pompeia. Revejo-lhes as última noite, na orgia do escuro. Em algumas o gesso terá endurecido aos poucos e, com movimentos cada vez mais penosos, elas ainda tentam fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto. Outras, assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer a intuição de um molde interno que se petrifica - de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca. Uma, azulada, terá dito: "quem olhar para dentro vira estátua de sal". De minha altura de gente olho a derrocada de um mundo menor. Começa a amanhecer. Uma ou outra antena escura freme seca à brisa. Da história anterior, canta um galo.

A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Até o ponto em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Terei que renovar todas as noites o açúcar letal? Como quem já não dorme sem o ritmo de um narcótico? E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? Viciada na tortura de procurar as estátuas que minha noite cansada erguia? Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E é por isso que hoje, com o orgulho da virtude ostento secretamente no coração uma placa: "Esta casa foi dedetizada".

A quinta história chama-se "Uma alma refeita". Começa assim: queixei-me de baratas." 


Clarice Lispector, A Quinta História

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* o conto "A quinta história", de Clarice Lispector está no livro "Felicidade Clandestina" de 1971. o que soube só há alguns dias é que antes foi publicado na edição 69 da revista Casa e Jardim, de 1960 (a revista completou este mês 60 anos, com uma edição histórica e primorosa, apresentando este conto e outros em um suplemento de papel jornal, sem as correções ortográficas que o tempo implementou - há também um de autoria do Drummond, que descreve as delícias de se ter um animal doméstico - imperdível).
** em homenagem ao aniversário de nascimento de Franz Kafka (em 03/07/2013 - hoje, portanto - completaria 130 anos).
*** ilustração final do livro Kafka's The Metamorphosis (EUA), por Alexa Thoen (representa o último e solitário "amor" de Gregor Samsa - uma mulher em um recorte de revista brilhante que ele mantém enquadrado, vestindo um casaco de pele gigantesca. na ilustração, repara, o casaco é feito de baratas cabeludas...)