terça-feira, 16 de abril de 2013

A Soma de Tudo


Na vida após a vida você revive todas as suas experiências vividas enquanto vivo, mas desta vez com os eventos reformulados em uma nova ordem: todos os momentos que compartilham uma qualidade são agrupados.

Você passa dois meses manobrando o carro na rua em frente da sua casa, sete meses fazendo sexo. Dorme durante trinta anos sem abrir os olhos. Por cinco meses ininterruptos você folheia revistas sentado no vaso sanitário.

Você sente toda a dor que sentiu de uma só vez; 27 intensas horas. O quebrar de ossos, o acidente de carro, a pele esfolar e queimar e se contundir, as dores do parto. Mas, uma vez que você passou por isso, está livre de agonia para o resto de sua vida após a morte.

Mas isso não significa que é sempre agradável.

Você passa seis dias cortando as unhas.
Quinze meses à procura de itens perdidos.
Dezoito meses de espera em filas.
Dois anos de tédio: olhando uma janela do ônibus, sentado em um terminal de aeroporto.
Um ano lendo livros. Seus olhos doem e coçam porque você não pode tomar um banho até que se inicie a maratona de 2.100 dias de chuveiro.
Duas semanas se perguntando o que acontece quando você morre.
Um minuto percebendo seu corpo cair.
Setenta e sete horas de confusão.
Uma hora percebendo que você esqueceu o nome de alguém.
Três semanas se maldizendo por ter feito algo errado.
Dois dias mentindo.
Seis semanas à espera do semáforo abrir.
Sete horas vomitando.
Quatorze minutos experimentando a mais pura alegria.
Três meses lavando roupas.
Quinze horas assinando seu nome.
Dois dias amarrando cadarços.
Sessenta e sete dias sofrendo por amor.
Cinco semanas dando voltas de carro, à procura do endereço.
Três dias analisando dicas de restaurantes.
Cinquenta e um dias decidindo o que vestir.
Nove dias fingindo que entende o que está sendo falado.
Duas semanas contando dinheiro.
Dezoito dias olhando pela porta da geladeira aberta.
Trinta e quatro dias sentindo saudades.
Seis meses assistindo comerciais.
Quatro semanas pensando sentado, querendo saber se existe algo melhor pra fazer com o seu tempo.
Três anos comendo.
Cinco dias abrindo e fechando botões e zíperes.
Quatro minutos imaginando como sua vida seria se você reformulasse a ordem dos eventos.

Nesta parte da vida após a morte você experimenta algo análogo à sua vida terrena e a sensação é beatífica: uma vida onde os episódios são divididos em pequenos pedaços, onde os momentos não perduram, onde se experimenta a alegria de saltar de um evento para o próximo como uma criança pulando de um lugar para outro na areia ardente.


 

David Eagleman, A Soma de Tudo, in SUM 


*










* David Eagleman caiu do telhado de sua casa quando era criança e desde então desenvolveu uma obsessão pela percepção do tempo. estudou sobre o assunto até o PHD em neurociência. paralelamente, tornou-se escritor - uma combinação matadora somada ao seu background acadêmico. confrontado com a onipresente pergunta feita a todo cientista sobre sua crença em Deus, respondeu como escritor e se posicionou como um possibilianista, um praticante do possibilianismo, uma filosofia que ele mesmo inventou: "há os que acreditam, os que não acreditam e os agnósticos, que nem acreditam nem desacreditam. sou quase isso, mas com uma postura mais ativa, investigatória. como cientista, experimento o maior número de possibilidades possíveis". nesse espírito, escreveu SUM, uma coleção de 40 contos com 40 possibilidades do que pode acontecer após a morte. o livro, que esta semana está em segundo lugar na lista dos mais vendidos na Amazon UK e entre as sugestões dos críticos da Time, The Guardian, The Week e da Wired, está disponível no Brasil.** A Soma de Tudo é o primeiro conto do livro, traduzido do inglês pela metida aqui.

Feeling this way, today



"A mente é argumentativa, faz você ir o tempo todo para o oposto. E esse é um processo infinito, que nunca termina, a menos que de repente você caia fora dele, a menos que você de repente se torne consciente do jogo, se torne consciente do truque da mente e pare no meio."

Osho 



*











* o verão se foi, mais uma vez. os amantes insistem em gravar seus passos em par, na areia da praia. há sempre uma canção que fale por nós. o vento é feliz por soprar e o mundo, por girar. antes do fim, a nada e a ninguém é dada a suprema prerrogativa de parar. na cabeça, um moinho de vento. no coração, Don Quixote, o cavaleiro dos sonhos impossíveis. nos pés, o desejo de parar é o que impele o movimento. na boca, a pergunta que não se responde: por que as folhas do outono guardam os matizes dos nossos olhos quando neles brilha o sol?
*** pra conferir, a letra de Windmills of your Mind , escrita pelo casal Marilyn e Alan Bergman, para composição de Michel Legrand, utilizada na abertura do filme "Crown, O Magnífico" (The Thomas Crown Affair), de 1968.

sábado, 13 de abril de 2013

Você tem, exatamente, três mil horas pra parar de me beijar

[cartaz do Festival de Cannes deste ano, que tem Paul Newman e Joanne Woodward em cena de "Amor Daquele Jeito", 1963]
 
 [Carrie Frances Fisher (Princesa Leia) e Chewbacca, nos bastidores de Star Wars]


[foto de Robert Doisneau - Le Bistrot Hotel]


Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
que solidão errante até tua companhia!
Seguem os trens sozinhos rodando com a chuva.
Em Taltal não amanhece ainda a primavera.

Mas tu e eu, amor meu, estamos juntos,
juntos desde a roupa às raízes,
juntos de outono, de água, de quadris,
até ser só tu, só eu juntos.

Pensar que custou tantas pedras que leva o rio,
à desembocadura da água de Boroa,
pensar que separados por trens e nações.

tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos,
com tudo confundido, como homem e mulher,
como a terra que implanta e educa os cravos.

Pablo Neruda, Soneto II, in Cem Sonetos de Amor


"I just want your extra time and your... kiss!" Prince


"Não fale, amor. Cada palavra, um beijo a menos." Dalton Trevisan

[Anita Ekberg e Marcello Mastroianni, em cena icônica de La Dolce Vitta, 1960]



"E quando a noite torna-se vagarosa
Unimos nossos corações e vamos
A mil beijos de profundidade."

Leonard Cohen , in A Thousand Kisses Deep


"O beijo é uma maneira de pôr duas pessoas tão próximas que não consigam ver nada de errado uma na outra". Rene Yasenek  


"Não sei se fui eu que a beijei, se foi ela que me beijou. Acredito que nos beijamos. Simplesmente nos beijamos, como um rio que desagua na foz, no mais natural dos percursos". João Morgado



"Um beijo é um segredo que se diz na boca e não no ouvido." Jean Rostand



"A única linguagem verdadeira no mundo é o beijo." Alfred de Musset




Quiero tenerte muy cerca
mirarme en tus ojos
verte junto a mí
Piensa que talvez mañana
yo ya estaré lejos
muy lejos de aquí

Bésame, bésame mucho
Como si fuera esta noche
la última vez

Bésame Mucho, letra de Consuelo Velásques, 1940


*












* e cá estou eu, mais minha vocação mal resolvida de jornalista de interior, a lembrar-te de efemérides (em todo efêmero - "que dura um dia" - uma partícula de eternidade). parece que o italiano Enrique Porchelo beijava todas as mulheres que encontrava na vila em que vivia, casadas, jovens e velhinhas. em 13 de abril de 1882, o padre local - um francês desnaturado - teria oferecido um prêmio em moedas de ouro às mulheres que não haviam sido beijadas pelo don juan italiano. reza a lenda que nenhuma apareceu. não é o máximo? o homem arrebatou 100% das mulheres da vila! e o fez de tal maneira que nenhuma teve a pachorra de mentir para ganhar as tais moedinhas. isso é que é beijo com fidelidade. parece que o tesouro está escondido em algum lugar da Itália até hoje. contaram-me que está em uma gôndola de Veneza e que os casais que visitam a cidade, à procura do tesouro, acabam trocando-o por beijos preciosos e inesquecíveis...  ** o dia internacional do beijo (segundo a wikipedia) é comemorado em duas datas: 13 de abril e 6 de julho. como muitas imagens do meu arquivo de beijos acabaram excluídas deste aqui, volto com este mesmo tema em julho. até lá, mil beijos por dia. *** no título, verso da canção "Por que a gente é assim", do Cazuza.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

O luar se apagou e a noite emudeceu



[...]

Quando o amor se acabou
E o meu corpo esqueceu
O caminho onde andou 
Nos recantos do teu 
E o luar se apagou 
E a noite emudeceu 
O frio fundo do céu 
Foi descendo e ficou. 

[...]


Márcia


*











*                                                               o sangue arrefeceu
o meu pé aterrou
minha voz sussurrou: 
"o meu sonho morreu" 

vou deixar-te. 
sobre a pele que há em mim, 
tu não sabes nada.

[em verdade, 
sob a pele que há em mim, 
não há de teu mais nada].


** A pele que há em mim foi escrita pela cantora e compositora portuguesa Márcia  e lançada em 2010, no seu primeiro álbum, "Dá". Em 2012, a canção foi regravada em dueto com o cantor J. P. Simões.
*** vale pôr a canção no repeat e acompanhar a letra, na íntegra...

De todas as mentiras, a literatura é a minha favorita

 
Na livraria, o cliente deposita no caixa uns quantos livros e desabafa para o jovem atrás do balcão:
 
- nem sei porque continuo vindo aqui: quanto mais leio menos convicções tenho.
- é?
- hum-hum. há muito que perdi a motivação para ler...
- não diga!
- deixei de ter convicções. "só tem convicções aquele que nada aprofundou".
- ...
- ... "felizes são os ignorantes". concorda?
- …
- concorda? 
- ...
- ei, por onde andas, com este olhar perdido?
- opa! desculpe. aqui mesmo… pensando apenas no que me acabou de dizer.
- e? alguma conclusão?
- nada de importante ou novo para um homem letrado como o senhor... no entanto, a ser verdade o que diz, não acha que se veria por aí muito mais gente feliz?

 

*










* história contada por Jaime Bulhosa, no blog da Livraria Pó dos Livros (de Lisboa) e reescrita por mim. ** na imagem, o cineasta François TruffautThe Compleat Liar, 1977. *** [de todas as mentiras, a felicidade é a única que não desisti de perseguir...]

terça-feira, 9 de abril de 2013

Feeling this way, today



 

 *










* just lay your head where my heart used to be and think of me as a train goes by...

sábado, 6 de abril de 2013

nada nos ombros ou nas mãos; quem me carrega sou eu


"De lo perdido, de lo irremediablemente perdido, sólo deseo recuperar la disponibilidad cotidiana de mi escritura, líneas capaces de cogerme el pelo y levantarme cuando mi cuerpo ya no quiera aguantar más."

Roberto Bolaños
 

*









* neste começo de abril, mês em que Roberto Bolaño completaria 60 anos, envio mis saludos más cordiales aos leitores que se ressentiram com a ausência de novos posts. E que mestre Bolaños, criador de "ciborgues capazes de suportar qualquer intensidade de desamor" venha me puxar pelos cabelos nas noites em que for me deitar sem atualizar o bloguito [que tudo que é para ser, realize. e que toda a verdade se cumpra] ** o desenho do sujeito que se carrega pelos cabelos, impulsionado pelo coração foi encontrada ao lado da citação deste post, em um caderno que pertenceu a Bolanõs.

Coisa simples e pouca, mas...

Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
Eugénio de Andrade
 




* estive fora do ar por uns dias. imersa no oceano, conectada à mim mesma. com os ouvidos e os sentidos sintonizados no fresco marulhar matutino e no estrondoso clamor noturno. do mar. de mim. ecoando 'inda mais forte nos meus vazios internos, agora mais ocos. crateras preenchidas de nada. expandidas por tanta água rolada, tanto leite derramado. no sábado que antecedeu a Páscoa, o barulho se fez silêncio e o dia ficou imenso. como a reverberar a "morte" do dia anterior: a pedra colocada sobre o túmulo. ou já aquele misterioso silêncio que prepara o renascimento - o intervalo misterioso onde se engendra a vida. o espaço entre o momento que se confirma que "tudo está consumado" e a insurreição. um silêncio preenchido por impasses, pela memória das travessias. um tempo amassado entre derrotas e esperanças, entre provação e júbilo. mas que anuncia, nas suas dobras íntimas, a esperada transmutação. não mais uma sôfrega indefinição: um intervalo entre o não e o que sou.