terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Encontre sua paixão e morra por ela


8-12-86

Oi John:

Obrigado pela ótima carta. Não é que seja dolorido lembrar de onde vim. Você conhece minhas origens - essas pessoas que estão tentando escrever sobre mim – elas simplesmente não estão acertando. Elas chamam minha antiga vida de "burocrática", ou usam esse termo, "9 to 5". Nunca foi 9-5. Não fazem horário de almoço nesses lugares. De fato, em muitos deles, pra garantir seu emprego, você não deve nem levar o almoço. Nunca te pagam hora extra e se você reclamar por seus direitos sempre há outro otário pronto pra tomar seu lugar.

Você sabe o meu velho ditado, não? "A escravidão nunca foi abolida, só foi ampliada para incluir todas as cores."

O que me dói mesmo é ver a dignidade se exaurindo nestes homens que lutam para manter empregos que não querem, mas temem uma alternativa pior. Estas pessoas parecem esvaziar, como balões que soltam lentamente o ar. Transformam-se em corpos esgotados. Uns cabeções, com mentes assombradas e obedientes. Os olhos desbotam. A voz fica feia. O corpo fica feio. O cabelo. As unhas. Os sapatos. Tudo fica feio.

Nunca entendi o que leva as pessoas a despender a vida inteira em um emprego assim. Envelheci, e ainda não consigo entender. Por quê eles fazem isso? Por sexo extraconjugal? Pra dormir com a TV ligada? Pra pagar por anos, mês a mês, por um carro? Pelos filhos? Pra que eles continuem errando os mesmos erros deles?

Logo no início, quando pulava de emprego a emprego, eu era jovem e tolo o suficiente pra alertar meus colegas: "Ei, o patrão pode chegar a qualquer momento e pôr todos no olho da rua, só porque ele quer, percebem isso?” Eles apenas me olhavam – o que eu lhes dizia simplesmente não cabia em suas mentes.

Vemos agora na indústria uma avalanche de demissões (fábricas falindo, mudanças, novos equipamentos). Estão demitindo centenas de milhares e a única reação destes pobres miseráveis é baixar os olhos, atordoados:

"Eu depositei aqui 35 anos da minha vida ..."

"Não é justo ..."

"Eu não sei o que fazer ..."

Tenho ganas de sacudir os ombros deles e dizer: 'patrões não pagam salários que possam te levar à liberdade, ok? apenas o necessário pra mantê-lo vivo pra que volte ao trabalho todas as manhãs'. É tão claro isto. Por quê ninguém enxerga? Por que não mudar antes que eles te passem a rasteira? Por que esperar?

Tudo o que escrevi até agora foi em aversão a isto. Foi um alívio ter mandado o sistema à merda. E agora que cheguei aqui, um escritor "chamado profissional" (é o que dizem), descobri que existem outros desgostos além do sistema.

Lembro de um dia, eu trabalhava como empacotador em uma empresa luminária, um dos meus colegas, na mesa ao lado, de repente gritou: "Eu nunca vou ser livre!"

O chefe passava por perto (Morrie - ainda lembro seu nome). Temi por sua reação. Mas ele apenas soltou uma gargalhada silenciosa, como se apreciasse o fato de que aquele homem nunca teria nas mãos o controle de sua própria vida.

Tive muita sorte de ter escapado dessa prisão. Demorou, mas quando aconteceu foi como um júbilo, a sensação inenarrável de viver um milagre. Já não escrevo como antes, percebo que minha mente está envelhecida e meu corpo cansado, mas também sei que já fui além do momento em que a maioria dos homens jamais pensou em continuar. Já que comecei tão tarde sinto que tenho esta dívida comigo. Mesmo que minhas palavras comecem a vacilar e eu precisar ser amparado pra subir um lance de escadas ou não souber distinguir um pássaro azul de um clipe de papel, sinto que, ainda assim, algo em mim vai se lembrar (não importa o quão longe eu tenha ido) da sujeira, da confusão, da bagunça de onde eu saí, para, pelo menos, chegar aqui, ao que considero uma forma generosa de morrer.

Não ter perdido a vida por completo parece-me uma realização digna, ao menos para mim.

seu garoto,  

Hank.



*







* Charles Bukwoski escreveu esta carta para seu editor John Martin, em 1986, aos 64 anos. quinze anos antes, este mesmo editor foi até ele com a proposta de um salário vitalício de US$ 100 por mês, com a condição de que largasse o emprego de auxiliar de escritório em uma unidade dos correios para se tornar escritor. Bukwoski aceitou. tinha então, 49 anos. seu primeiro livro, Cartas na Rua (Post Office), foi lançado dois anos depois. "Tudo começou como um erro", anuncia Charles na primeira linha do romance, francamente autobiográfico. na voz de Henry Chinaski, seu alter ego, Bukowski narra suas memórias em tom hilário e melancólico: o erro teria sido candidatar-se à vaga de carteiro temporário no início dos anos 50. quando se deu conta, estava em seu segundo emprego na empresa e somava catorze anos em uma rotina maçante – ainda mais para um homem sempre de ressaca e já na meia-idade. 

** sobre este tema – e além - permita-me sugerir o vídeo abaixo. no mínimo você vai sorrir. ou se surpreender.


*** no título, uma das possíveis traduções para a citação "find what you love and let it kill you” - C.B.

2 comentários:

  1. Acordar e ler e assistir o que está aqui foi um verdadeiro despertar. E um presente. Mais um, deste blog tão intenso. Obrigada. Beijos, Maria.

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    1. Obrigada por escolher abrir o blog desde tão cedo. Vou lembrar disso quando escrever os próximos posts: sempre quentes, fortes, intensos e energizantes, feito uma boa xícara de café.

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