domingo, 2 de dezembro de 2012

Polifonia


Quando Deus vacila em mim
sem adornos, ataduras, sem outro pretexto
Quando o sinto a ponto de perder-se
na folhagem a meu lado
compreendo o grande mistério
uma lei face à qual as palavras
não servem

Deus abraça o meu vazio profundamente grato
Abraça a imundície de todos os seus filhos
e continuamente declara-os bem aventurados

Pois Deus sendo casto deixa-se consumir
com a paixão insultuosa
dos devassos


José Tolentino de Mendonça, em Estação Central


...


O risco implícito em todo o grande amor é o de abafar a polifonia da existência. 
Polifonia é termo que nasce de um conjunto de coisas completas e não diminuídas. Não é filha de subtrações mas de adições. E é o oposto da monotonia, que é viver em um só tom, um só amor, numa só rotina.
Buscarmos incessantemente a música variada dos dias e as muitas dimensões que se nos oferecem a cada oportunidade é um caminho de alegria e cumprimento pessoal que não é negado por nenhuma forma amorosa que aceitemos abraçar.  
Quero dizer que Deus e a sua eternidade desejam ser amados do fundo do coração, mas sem que o amor terreno seja prejudicado ou debilitado; algo como um cantus firmus, em relação ao qual as outras vozes da vida formam o contraponto.
O homem é capaz de amar ilimitadamente - tão amplamente e variadamente que nem mesmo Deus é capaz de cobrir todas estas modulações. O amor de Deus não responde a todas as dimensões do coração do homem.
Existe uma extensão das capacidades amorosas do homem, para a qual Deus não pretende ser o epílogo único. "Amarás a Deus sobre todas as coisas" não significa: ama somente Deus, reservando todo o teu coração para ele, mas: ama-o com totalidade, sem meias medidas. Assim, devemos, de igual modo, amar: com todo o coração, sem reservas. A totalidade do coração não significa a exclusividade. 
Não é através da diminuição do humano que em nós cresce o divino. A verdade consiste justamente no contrário: mais humanidade equivale a mais divindade. Não existe, pois, contradição ou rivalidade entre amor humano e amor a Deus. 
Na próxima vez que vires um fiel à porta da igreja, não o olhe com um olhar superficial ou distraído, mas como um ser que vive uma grande história de amor - a história de um coração de carne a que Deus fez uma proposta impossível.


Ermes Ronchi, na introdução de Os beijos não dados/Tu és a beleza




*








* a fé envergonha-se de ser pronunciada por minha boca - mas eu sigo acreditando que um dia ela se revelará em mim como uma sinfonia de Bach, ouvida através de meus poros, feito perfume dos anjos. - Senhor, eu não sou digna que entreis em minha morada, mas fazei com que eu sinta Sua palavra e eu serei salva.

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