segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Ver para reduzir


De todos os sentidos, a visão está em vantagem, nos dias que correm. Ver é o mote. Ver tudo, ver bem, ver mal, mas ver. Ver para crer. Ver para ser. Ver para saber. As coisas entram-nos pelos olhos adentro, sem necessidade de utilização de qualquer outro sentido e sem necessidade de que se dê sentido ao que se vê. As coisas vêem-se e imediatamente se comprovam, porque estão visíveis. O mais importante é a quantidade daquilo que se vê. E não são admitidos sinônimos mais elaborados e complexos. Observar implica a utilização do intelecto, pelo que será um ato demorado. Descarte-se a observação, não há tempo para intelectualidades. Ver, só. Ver só. Ato isolado e que isola. Nada se constrói, toda a informação está lá, já construída a pensar em nós. O esforço é mínimo e a imaginação vai mirrando, para aumentar o campo de visão.

Pouca atenção se dá ao que não é visível, ou que não está lá. Se não se vê, não é. Se não é, não pode estar. A filosofia do ser é a filosofia do ver. A visão é unilateral, unidimensional e superficial. Não admira que o ser, nos dias de hoje, também o seja. Não há lugar à observação da profundidade das coisas, muito menos às opiniões dos restantes sentidos, que, muitas vezes, atraiçoam a visão ao negar que aquilo que se viu é aquilo que é. A dispersão angustia, porque obriga a pensar e a escolher qual a informação que queremos reter como a mais correta. É mais fácil acreditar na verdade que os olhos contam. Mas, falando em falibilidade, a visão não está isenta de responsabilidades. Como é que os olhos podem reduzir um mundo cheio de variáveis, dualidades e sombras, a informação clara, sintética e rigorosa sem traírem o próprio mundo que observam e as regras contrárias que o suportam?

A visão é, pois, um tradutor traidor. Porque insistimos ainda em confiar no que nos diz, sem que peçamos segunda opinião aos outros sentidos e ao intelecto, é algo que nos deveria intrigar. Mas como a intriga é um ponto escuro no meio da claridade e só na claridade é que vemos as coisas, descarte-se a intriga também. Os olhos só vêem o que é visível. No escuro, não se consegue ver. O desconhecido, estando coberto, está fora do alcance do olhar, que não lhe consegue medir as formas. E, como a visão fica impotente, resolve defender-se, usando a imaginação a seu favor. Inventa monstros e coisas horríveis por baixo do manto de escuridão, para nos convencer a ir contra a nossa curiosidade natural, que nos impele para tudo o que é desconhecido. A maior parte das vezes, não nos aventuramos a tentar levantar a ponta do véu, convencidos de que o que os olhos nos negam ver é para nosso bem e autopreservação. Uma espécie de síndrome de Estocolmo. Tanto tempo estamos cativos daquilo que os nossos olhos vêem por nós, que acabamos por achar que este cativeiro nos é benéfico.

A visão é uma gigantesca máquina de lavar roupa, onde pomos o mundo e de onde ele sai, cada vez mais encolhido. Tudo se foi reduzindo ao visível, até o invisível. A música passou a ver-se, mais do que a ouvir-se. Deus não existe, porque não se mostra. O estilo importa mais do que o talento. As ações valem mais do que os sentimentos. A nossa vida passou a ser vivida em linguagem televisiva. Tudo rápido, tudo formatado, tudo para encher o olho e alienar a mente. A visão é o Rei-Sol do nosso corpo. Até ao dia em que a cabeça, farta do seu subjugo, ponha em marcha a revolução dos sentidos, restabeleça a hierarquia no corpo, proíba a passividade e obrigue os olhos a ver para lá daquilo que observam.



Ana Bacalhau - Ver, verbo passivo de sentido único

 

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* Ana Bacalhau é cantora, portuguesa, vocalista da banda Deolinda e escreveu esta crônica - que eu não me canso de ler e reler -  para a revista dominical Magazines, do jornal Diário de Notícias, em 01/07/12.

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