domingo, 19 de agosto de 2012

Onde a palavra se fez homem




  • "Show me the place where the word became a man..."


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* Leonard Cohen, 78, é inglês, poeta antes de cantor, com produção visceral, tanto na literatura como na música. Suas canções têm instrumentação sutil, econômica e as letras, verdadeiros poemas, sempre foram mais recitadas do que cantadas -  muitas vezes de forma dolorida, com interpretação idem. Não me aguento com a voz: a cada dia mais grave, rouca e sexy. Amo!

sábado, 18 de agosto de 2012

Passar a noite em claro, dentro de ti



Faço e ninguém me responde 
esta perguntinha à-toa: 
Como pode o peixe vivo
morrer dentro da Lagoa?


Carlos Drummond de Andrade, in "E agora, José?



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* mais uma típica noite de insônia (= pensamentos desconexos, lembranças fugazes). uma vez tive um amante que  me chamava na intimidade de  'oceano' .  
a vida não tem o menor sentido - muito menos o amor - e só o humor salva. perceba a ironia: este mesmo amante - que nasceu muito longe do mar e que temia suas ondas, não lhe apetecia o sabor do peixe  nem o cheiro dos frutos do mar e sequer sabia nadar - esse, foi o que mais fundo mergulhou em mim...

domingo, 12 de agosto de 2012

O dobro de quem somos



"Nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. 
O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai. 
O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és."

Valter Hugo Mãe, in "O filho de mil homens"






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* Especialmente para o pai dos meus filhos, que encontrou a medida exata da combinação improvável de amor e sabedoria. A ele, eternamente, minha gratidão desmedida por tornar a aventura da maternidade um exercício de cumplicidade, de paixão e de intimidade. ** fotos do pai Paul McCartney, com a filha Mary (coloridas) e com Mary e Heather (p&B), feitas pela mãe, Linda McCartney. (Ficou curioso? Paul e Linda tiveram três filhos: Mary Anna Eastman McCartney, Stella Nina Eastman McCartney e James Louis Eastman McCartney. Quando Linda casou com Paul McCartney, trouxe à tira-colo a pequena Heather Louise Eastman, que logo foi adotada por Paul, ganhando o singelo sobrenome ”McCartney”. A pequena Heather viu o fim dos Beatles bem de perto e também estava no colo de Paul, quando casou com a mãe dela. Heather nasceu em 31 de dezembro de 1962. Este ano completa 50 anos e seu pai verdadeiro é um geólogo americano chamado Joseph Melville See Jr.)

sábado, 11 de agosto de 2012

Sobre a simetria, a sincronicidade e as coincidências

 
  • simetria é uma característica que pode ser observada em algumas formas geométricas, equações matemáticas ou outros objetos. Ainda que dois objetos semelhantes pareçam o mesmo, eles são, logicamente, diferentes. De fato, a simetria refere-se mais a semelhanças que a igualdades. 

"Deus está nos detalhes", Mies van der Rohe 
  • sincronicidade é um conceito desenvolvido por Carl Jung para definir acontecimentos que se relacionam não por relação causal e sim por relação de significado. Para isto, é necessário que consideremos os eventos sincronísticos não relacionados com o princípio da causalidade, mas por significado, igual ou semelhante, e por este significado sugerir um padrão subjacente. A sincronicidade difere da coincidência, pois não implica somente na aleatoriedade das circunstâncias, mas sim num padrão subjacente ou dinâmico que é expresso através de eventos ou relações significativos. A sincronicidade é também referida por Jung de "coincidência significativa".


    "Coincidência é a maneira que Deus encontrou de permanecer no anonimato" , Einstein



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* produzido pelo coletivo Everynone, o curt Symmetry foi o vencedor Vimeo Awards 2012 e também da categoria lírico do festival. 

O amor, pai


"Somos todos iguais na fragilidade com que percebemos que temos um corpo e ilusões. Daqui, de onde estou, tudo me parece muito diferente da maneira como esse tudo é visto daí, de onde estás. Depois, há os olhos que estão ainda mais longe dos teus e dos meus. Para esses olhos, esse tudo é nada. Ou esse tudo é ainda mais tudo. Ou esse tudo é mil coisas vezes mil coisas que nos são impossíveis de compreender, apreender, porque só temos uma única vida.
— Por quê, pai?
— Não sei. Mas creio que é assim. Só temos uma única vida. E foi-nos dado um corpo sem respostas. Aquilo em que queremos acreditar corre no nosso sangue, é o nosso sangue. Mas, em consciência absoluta, não podemos ter a certeza de nada. Nem de nada de nada, nem de nada de nada de nada. Assim, repetido até nos sentirmos ridículos. Mas é bom que seja assim. Porque podemos continuar e, enquanto continuamos, continuamos. Estamos vivos. Ou acreditamos que estamos vivos, o que é, talvez, a mesma coisa.
— Por quê, pai?
— Porque o amor, filho."

 
José Luis Peixoto, in "Abraço"



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* por que os filhos amam os pais?  
  • porque um só existe pelo outro.
  • porque os pais amam os filhos. 
  • porque sim.
  • porque o amor.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Calmaria



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada. 


Miguel Torga, Súplica


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* um mar sem ondas é como o homem sem amor. [o mar é feito o homem: da sua profundidade só temos uma pequena noção - tantos monstros adormecidos esperando por despertar... e ainda à merce dos ventos e das maré.]

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

E há lá coisa melhor?


A mão dela tinha Deus dentro. Apertava-a, beijava-a com a minha mão. 

Há lá coisa melhor do que duas mãos que se beijam?

Com minha mão urgente - minha mão como se uma ambulância - percorríamos as ruas mesmo que fossem as ruas que nos percorressem a nós, simples corpos sorridentes. 

Há lá coisa melhor do que dois corpos que se sorriem?

Sabia, com cada um dos meus dedos, com cada uma das minhas mãos, todos os riscos e ranhuras da mão dela; era ali, no por dentro das mãos que tocava, que ouvia as novidades, que lia os títulos das notícias, de todas as notícias que me importavam. 

Há lá coisa melhor do que ler as notícias na mão que se ama?

Não havia, nos passos que dávamos, qualquer distância andada, nem sequer um caminho a andar; éramos simplesmente caminhantes, viajantes do nosso tempo. E acreditávamos, todos os dias, que o tempo era apenas o instante em que, juntos, parávamos o tempo. 

Há lá coisa melhor do que o instante em que se para o tempo?

Recusávamos as palavras, até os gestos; e era assim que nos contávamos por inteiro.

Há lá coisa melhor do que aquela parte em que nos contamos por inteiro?

Não sabíamos, nunca soubemos, se era muito o tempo, o tempo das horas e dos minutos, que passávamos juntos; sabíamos que era, para nós, todo o tempo do mundo.

Há lá coisa melhor do que sentir todo o tempo do mundo?

Sabíamos que o tempo era suficiente para aguentarmos o resto mais um tempo. Para suportarmos o por fora das nossas mãos. Talvez, no momento em que as mãos se deixassem de amar, houvesse lágrimas, as lágrimas que se deixam cair sempre que algo cai dentro de nós. Mas tínhamos muito claro o desejo de ficar por dentro das nossas mãos para sempre.
E ficamos.


Pedro Chagas Freitas, A mão dela


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* proponho-lhe um desafio, um exercício de imaginação: se fossemos proibidos amar com o corpo e, para este fim, só pudéssemos usar dele uma fração, qual seria sua parte escolhida? os olhos? os lábios? as mãos? os órgãos sexuais? onde no corpo fica o amor? onde ele se manifesta? onde o guardamos? onde ele é moldado?

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Eterna. Até o Fim.



devagar, o tempo transforma tudo em tempo. 
o ódio transforma-se em tempo, 
o amor transforma-se em tempo, 
a dor transforma-se em tempo. 
os assuntos que julgamos mais profundos, 
mais impossíveis, 
mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo. 
por si só, o tempo não é nada. 
a idade de nada é nada. 
a eternidade não existe. 
no entanto, a eternidade existe. 
os instantes dos teus olhos
parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos. 
os instantes do teu corpo de luz eram eternos. 
foste eterna até ao fim. 


José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"


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* às vezes, tenho desejo de me desculpar aos queixosos que me procuram: lamento, mas não fui eu quem inventou o mundo, o tempo, o amor ou morte. quero me isentar da culpa mas não posso, sou conivente...

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Mulher, a voz da vez

Na literatura é assunto controverso. Eu não tomo partido, já vou assumindo: mulher é diferente.

Quando cria, quando escreve, quando canta... mesmo quando é sutil - e acabam sendo tão sutis certos detalhes - logo se percebe o toque feminino nas artes.

Aqui, minha seleção particular de novos talentos femininos que vêm se destacando no campo da música e que catapultaram meus ouvidos nos últimos tempos.



  • Desde os primeiros acordes Iyeoka me lembrou Nina Simone - não só pela aparência e a escolha de repertório - mas pela atitude, seja no palco, seja de fronte às câmeras. A wiki matou a charada: Iyeoka Okoawo (pronuncia ii-yo-kah) é uma poeta nascida na Nigéria, naturalizada americana, artista, cantora, ativista, educadora e fellow TEDGlobal. Visse? Não disse?


  • Caro Emerald é uma preciosidade - de longe, minha predileta desta seleção, já aviso. A moça - holandesa - parece cantora de cabaré, mas faz um jazz retrôzinho, descolado, modernex e de muita, muita qualidade. I'm obsessed! 


  • Imany nasceu nas ilhas de Comores, entre a costa africana e Madagáscar. Foi atleta olímpica, modelo e agora canta (graças!), porque a voz - A VOZ! - tem tanta personalidade que parece ter vida própria - é quase um outro ser que ali canta!    


  • Zaz tem um quê de cigana, mas é francesa. Outra com timbre de voz que lembra o Pato Donald - com efeito contrário. É ainda jovem, mas a carreira vai bem obrigada e está bem consolidada na Europa. Je veux foi seu primeiro hit e o que lhe deu visibilidade.


  • tá, miss Penner é a mais fraquinha da tchurma, mas nem tanto, vá! compõe e canta um soft folk, com cara de luau na praia, amigos queridos ao redor da fogueira e marshmallow - que eu nem gosto, mas é docinho e super iuései, bem no estilo da Jess...


  • Selah Sue foi minha trilha do último verão, mas segue comigo até agora, sem cansar. Adoro a combinação original e poderosa de folk e reggae de suas composições. E me impressiono com sua aparência visceral - não dá pra ficar imune ao seu olhar, seu cabelo (sempre elétrico, confere os vídeos todos no youtube), sua voz rascante e a metralhadora de palavras. Selah é belga, mas na França, onde brilha como estrela de primeira grandeza, é conhecida como a "reencarnação de Janes Joplin".







* causa-me muito desconforto ler e ouvir comentários que a boa música morreu. que o que temos aí, músicos e canções, são lixo. que os melhores ficaram lá pelos 60's, 70's, 80's e que - percebe o absurdo? - não deixaram herdeiros... ora, também fui "mais" jovem outro dia. e o discurso era o mesmo. só que o alvo da vez era a New Age, o pop de Michael Jackson e Madonna, o novo rock inglês, com vocalistas sem "vísceras" como Bryan Ferry e Morryssey, dos Smiths (percebe o absurdo 2?). os detentores do saber, os que escreviam nos jornais da época, os que influenciavam a mídia de então haviam sido jovens na década de 50/60. tiveram uma educação musical formada por big bands, vozes de longo alcance, rock primordial... habituar-se aos novos tempos nunca foi tarefa fácil. mas nestes novos tempos, onde toda a exposição é facilitada pelas novas mídias, todos - sem exceção - têm hoje a possibilidade de "mostrar seu trabalho". basta dar um rolê pelo youtube e comprovar. há de tudo! de todos os lugares e em grande quantidade. ora, onde há muita quantidade há menos qualidade, diz a regra geral, que também apregoa: sempre haverá exceções! e as moças deste post são excelentes exceções. para mim, a solução é simples: não gosta, não ouve - mas, principalmente, não julgue - que quem se apega ao passado ou é velho ou museu...  

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

É a viagem que faz a pessoa ou é a pessoa quem faz a viagem?


 
"O que é uma viagem?
Uma viagem não é uma excursão.
Não são férias.
É um processo de descobrimento. De autodescobrimento.
Uma viagem nos põe frente à nós mesmos.
Ensina que não somos únicos no mundo, mas mostra que cabemos todos nele.
É a viagem que faz a pessoa ou é a pessoa quem faz a viagem?
Uma viagem é, em essência, vida.
Onde queres que te leve a tua?


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* Em 2009, a Louis Vuitton lançou o Prêmio Journeys , um festival de cinema independente para cineastas emergentes. A viagem está no coração da Louis Vuitton (originalmente iniciada com a fabricação de malas e valises), assim a primeira edição do concurso centrou-se na noção de viagem, em seu significado físico e emocional. Os competidores foram convidados a reinterpretar o sentido da palavra "journey" e o que a viagem significava para eles. Sho Tsukikawa, estudante da Tokyo University of Film Arts, Japão, recebeu o prêmio do júri - liderado por Wong Kar Wai, com seu "The Time Walker", acima. Merecido!

Ver para reduzir


De todos os sentidos, a visão está em vantagem, nos dias que correm. Ver é o mote. Ver tudo, ver bem, ver mal, mas ver. Ver para crer. Ver para ser. Ver para saber. As coisas entram-nos pelos olhos adentro, sem necessidade de utilização de qualquer outro sentido e sem necessidade de que se dê sentido ao que se vê. As coisas vêem-se e imediatamente se comprovam, porque estão visíveis. O mais importante é a quantidade daquilo que se vê. E não são admitidos sinônimos mais elaborados e complexos. Observar implica a utilização do intelecto, pelo que será um ato demorado. Descarte-se a observação, não há tempo para intelectualidades. Ver, só. Ver só. Ato isolado e que isola. Nada se constrói, toda a informação está lá, já construída a pensar em nós. O esforço é mínimo e a imaginação vai mirrando, para aumentar o campo de visão.

Pouca atenção se dá ao que não é visível, ou que não está lá. Se não se vê, não é. Se não é, não pode estar. A filosofia do ser é a filosofia do ver. A visão é unilateral, unidimensional e superficial. Não admira que o ser, nos dias de hoje, também o seja. Não há lugar à observação da profundidade das coisas, muito menos às opiniões dos restantes sentidos, que, muitas vezes, atraiçoam a visão ao negar que aquilo que se viu é aquilo que é. A dispersão angustia, porque obriga a pensar e a escolher qual a informação que queremos reter como a mais correta. É mais fácil acreditar na verdade que os olhos contam. Mas, falando em falibilidade, a visão não está isenta de responsabilidades. Como é que os olhos podem reduzir um mundo cheio de variáveis, dualidades e sombras, a informação clara, sintética e rigorosa sem traírem o próprio mundo que observam e as regras contrárias que o suportam?

A visão é, pois, um tradutor traidor. Porque insistimos ainda em confiar no que nos diz, sem que peçamos segunda opinião aos outros sentidos e ao intelecto, é algo que nos deveria intrigar. Mas como a intriga é um ponto escuro no meio da claridade e só na claridade é que vemos as coisas, descarte-se a intriga também. Os olhos só vêem o que é visível. No escuro, não se consegue ver. O desconhecido, estando coberto, está fora do alcance do olhar, que não lhe consegue medir as formas. E, como a visão fica impotente, resolve defender-se, usando a imaginação a seu favor. Inventa monstros e coisas horríveis por baixo do manto de escuridão, para nos convencer a ir contra a nossa curiosidade natural, que nos impele para tudo o que é desconhecido. A maior parte das vezes, não nos aventuramos a tentar levantar a ponta do véu, convencidos de que o que os olhos nos negam ver é para nosso bem e autopreservação. Uma espécie de síndrome de Estocolmo. Tanto tempo estamos cativos daquilo que os nossos olhos vêem por nós, que acabamos por achar que este cativeiro nos é benéfico.

A visão é uma gigantesca máquina de lavar roupa, onde pomos o mundo e de onde ele sai, cada vez mais encolhido. Tudo se foi reduzindo ao visível, até o invisível. A música passou a ver-se, mais do que a ouvir-se. Deus não existe, porque não se mostra. O estilo importa mais do que o talento. As ações valem mais do que os sentimentos. A nossa vida passou a ser vivida em linguagem televisiva. Tudo rápido, tudo formatado, tudo para encher o olho e alienar a mente. A visão é o Rei-Sol do nosso corpo. Até ao dia em que a cabeça, farta do seu subjugo, ponha em marcha a revolução dos sentidos, restabeleça a hierarquia no corpo, proíba a passividade e obrigue os olhos a ver para lá daquilo que observam.



Ana Bacalhau - Ver, verbo passivo de sentido único

 

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* Ana Bacalhau é cantora, portuguesa, vocalista da banda Deolinda e escreveu esta crônica - que eu não me canso de ler e reler -  para a revista dominical Magazines, do jornal Diário de Notícias, em 01/07/12.