quinta-feira, 22 de março de 2012

Da série Verdades Indissolúveis: a felicidade perfeita



"Você é feliz?" foi a pergunta que me fez o amigo que não me vê há 25 anos
e que me reencontrou há pouco, no chat do Facebook,
parei pra pensar. um, dois, três segundos. surpresa com a pergunta, mas já sabendo a resposta:
"Noooop!" foi o que escrevi.
Uma constatação que nem é triste, nem conformada
somente uma verdade feliz: sou muito gente pra me encher de alegrias,
abanar o rabinho e correr ganindo quando me lançam um ossinho.

Então fica combinado: não sou feliz e sou feliz por ser assim.
[acho até que já posso morrer
mas sigo na fé que me provem o contrário]

...


"Estou lendo um romance de Louise Erdrich. A certa altura, um bisavô encontra seu bisneto. O bisavô está completamente lelé (seus pensamentos tem a cor da água) e sorri com o mesmo beatífico sorriso de seu bisneto recém-nascido. O bisavô é feliz porque perdeu a memória que tinha. O bisneto é feliz porque não tem, ainda, nenhuma memória. Eis aqui, penso, a felicidade perfeita. Não a quero."

Eduardo Galeano, in desmemória/1




*




* no mais, vou levando como pede o ditado: com alegrias suficientes para sustentar a doçura infantil, desafios suficientes para me fazer forte, tristezas suficientes para me manter humana e esperança o quanto baste para que eu aviste a felicidade. ** no vídeo, trecho de Cenas de um Casamento (1973), de Ingmar Bergman, com Liv Ulmann.

Solo unos piquetitos



Dizem
que o primeiro amor é o mais importante.
É muito romântico,
mas não é o meu caso.

Algo entre nós houve e não houve,
deu-se e perdeu-se.
Não me tremem as mãos
quando encontro pequenas lembranças,
aquele maço de cartas atadas com um barbante,
se ao menos fosse uma fita.

O nosso único encontro, passados anos,
foi uma conversa de duas cadeiras
junto a uma mesa fria.

Outros amores
continuam até hoje a respirar dentro de mim.
A este falta fôlego para suspirar.

No entanto, sendo como é,
não lembrado,
nem sequer sonhado,
consegue o que os outros não conseguem:
acostuma-me com a morte.





Wistawa Milewska, O Primeiro Amor




*







* na imagem, tela de Frida Khalo, da época que descobriu a traição de seu marido, Diego Rivera, com sua irmã, Cristina. Frida imprimiu sua dor e raiva nesta obra. Uma dor tão profunda que não cabia em si - projetou-a nas desgraças de outra mulher. Frida havia lido em um jornal a história sobre uma mulher assassinada a facadas pelo marido. O assassino defendeu-se perante o juiz dizendo: "Mas foram tão somente uns poucos 'piquezinhos'". Kahlo confidenciou a um amigo que simpatizou com a mulher morta pois ela foi "assassinada pela vida"... uma referência ao romance entre Diego e Cristina e à crença de que o amor é vida. As pombas - símbolo da paz - que ironicamente seguram a faixa com título do quadro, representam os dois lados do amor (um claro e outro escuro). Quando a pintura foi concluída, Kahlo deu um toque final para o projeto: num acesso de raiva, esfaqueou o quadro diversas vezes. Em novembro de 1938, a obra foi levada à primeira exposição individual de Kahlo na galeria Julien Levy, em Nova York. ** cuantos piquetitos uno soporta hasta el fin?

terça-feira, 20 de março de 2012

Ler é sexy [2]



"Você pode possuir um livro sem realmente possuí-lo. Além do sentido comercial ou legal do vocábulo, não há propriedade emocional ou metafísica. Assim, quando um livro nos fala de maneira tão particular e poderosa sentimos que é nosso - exclusivamente! - que existe apenas por nossa existência. Certas pessoas surtem em nós este mesmo efeito. Olham diretamente em nossos olhos e nos falam intimamente, com uma voz entre sussurrada e abafada, que nos faz sentir singularmente importantes, mesmo que todos ao redor percebam igualmente a sedução. Chamamos a isso de flerte. Os melhores livros são flertes, também, uma vez que eles parecem ser só nossos, quando na realidade não são de ninguém" (Blake Morrison, Doze Pensamentos sobre Leitura).




"Livros podem ser sexies? perguntou o New York Times de uma maneira que só poderia ofender ou alarmar quem cuja vida depende das palavras. Um livro, para alguns de nós, não é apenas uma página - virada -  mas um tesão! Os verdadeiramente "possuídos" por livros (e a pergunta do jornal veio justamente com o lançamento do filme "Possessão") não levam pra casa um livro sem antes cheirá-lo, sopesando-o na mão, sentindo sua tensão, a musculatura bem tonificada da lombada e verificando se a capa (front-end) e a contracapa (back-end) são "gratificantes". Eu gosto de agarrar um livro, adivinhando o prazer que vou sentir ao lê-lo. Gosto de ventilar o volume, tomando-o da prateleira de surpresa, folheando suas páginas e curvando minha coluna para trás a um ponto onde sua constituição suave e resistente, colada ao meu corpo libere da garganta um suspiro suave, profundo e quase imperceptível - o primeiro que me espera..." David Thomsom.





*

Outonal



Abrindo a janela matinal, o cronista deparou com um firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre céu e chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.
Todas ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação que chegava até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem.

E como se o cronista perguntasse – Fala, amendoeira! Por que foges ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares? a árvore pareceu explicar-lhe:

– Não vês? Começo a outonear. É 20 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

– E vais outoneando sozinha?

Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

– Somos todos assim.

– Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

– Não me entristeças.

– Não, querido. Quero apenas que te outonize com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves… Outoniza-se com dignidade, meu velho.


[Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós.]


Carlos Drummond de Andrade, in Fala Amendoeira




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* o outono é minha estação predileta, ever! penso nele como uma "outra primavera, cada folha uma flor" (Albert Camus). ** alguém mais vê em Strawberry Fields Forever uma canção outonal? sempre achei. será pelos violinos? muito provavelmente: violinos, para mim, estarão sempre vinculados à esta outra melodia outonal...

sábado, 10 de março de 2012

Calma. E audácia.





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* e a cada dia vivido, identifico-me mais e mais com Jeanne Moreau e almejo sua sabedoria, especialmente por esta foto:

sábado, 3 de março de 2012

Laços de ternura



Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

Paulo Mendes Campos, "Acorrentados", in O Anjo Bêbado
 
 
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* ternura. um tempero sutil que torna dourada a existência na terra.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Sem ti


Sei quem és, mas falta-me o teu nome - nem
sempre as palavras chegam até aos olhos. Mas
não te importes: há outras coisas que nunca
esquecerei - os meus braços ancorados no teu
corpo, uma cegueira, e o mundo de repente tão
pequeno - e essas, tu não sabes, mas faltam-me
também. O teu rosto, dá-mo por um segundo. A
tua boca, claro. São tantos anos sem ti nos vincos
da minha saia, tanta vida guardada para um dia
assim. Vira-te agora, pois. Deixa cair esse sorriso
dos teus lábios - nos meus há-de deitar-se como
o sol, ao fim da tarde, quando de novo sobre eles
respirares com o perfume salgado das marés. Mas
nada digas do meu corpo cansado - é uma camisa
de verão esquecida numa praia, e a roupa é sempre
o menos, tanto faz. Não vês quem sou? O tempo
não pode ter castigado apenas o meu olhar. Vem
para mais perto e espreita devagar: são tantos anos
sem os teus braços nas mangas do meu vestido,
tanto sangue guardado nas veias para uma noite
assim. E tu já vais?
Maria do Rosário Pedreira

  
  
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* deliciada com os cortes, as pausas na respiração e no raciocínio que o ritmo deste poema impõe... suspiro!