quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A última estação


"O grande Leon Tolstoi, mundialmente conhecido por ter escrito Guerra e Paz (1869), a colossal epopéia que envolve toda uma nação e que encerra nela não só uma parábola da sociedade aristocrática russa nos tempos das campanhas napoleônicas, como também a intrincada, desmesurada, misteriosa, única e algo louca alma russa.

O grande Leon Tosltoi, que escreveu antes de todos que 'as famílias normais não tem nada de especial' e desvendou outra alma desmesurada, misteriosa e definitivamente louca: a da mulher adúltera apaixonada, em Anna Karenina (1878).

O grande Leon Tosltoi, também conhecido por suas afrontas ao regime czarista (foi contra o czar por uma questão de princípio), por ter renunciado ao título de conde, por ter sido excomungado pela igreja ortodoxa, por proferir sentenças altamente audazes e provocadoras para a época e para o império russo ('Os ricos farão de tudo pelos pobres, menos descer de suas costas').

Igualmente poderoso - reconhecido e idolatrado como um gênio em vida - e intocável, ninguém se atrevia a desafiá-lo. Multidões emocionadas desfilaram no seu cortejo fúnebre a entoar o etern memóri, no primeiro enterro civil celebrado na Rússia. Mas era antipático como a foice! Ele próprio se definia: 'Sou feio, desajeitado, pouco asseado e sem verniz mundano. Sou irritadiço, desagradável para os outros, pretensioso...'. Mesmo na sua escrita, de frases densas, sem efeitos de estilo nem qualquer tipo de submissão aos sinônimos, não demonstrava um humor particular.

Parecia o gênero de pessoa que amava tanto, mas tanto a humanidade que quase se esquecia de amar o próximo - ou a família - que estava bem ali ao lado. Preferia mudar o mundo do que mudar-se a si próprio. Queria doar em testamento os direitos da sua obra ao povo russo, desfazer-se das suas propriedades, o que enlouqueceu a condessa Sophia, aquela que foi sua musa, mãe dos seus 13 filhos, que lhe decifrou e copiou 6 vezes as suas garatujas da Guerra e Paz e lhe dava conselhos do enredo: 'A Natacha nunca diria tal coisa ao príncipe Andrei'.

Não era a forma que lhe interessava ('Se a vida falasse, falaria como Tosltoi escreve'). E no entanto, este homem que passou metade da vida a vergastar colericamente e a outra metade a lamber as próprias feridas, arrastou, já velho, rabugento e hesitante, quase como um profeta, um séquito de discípulos fanáticos que se converteram ao tolstismo, uma espécie de teologia algo débil e confusa, que ora se aproximava dos primitivos cristãos, ora do anarquismo místico, ora da resistência passiva que inspirou Ghandi - aliás, ambos trocaram correspondência. Uma série de apóstolos (entre os quais uma filha voluntariosa) acreditavam cegamente que 'Deus falava de uma forma particularmente clara através de Leon Tosltoi'.

Já não era o jovem nobre que participou na Guerra da Criméia e que cometia excessos, alvoroços e 'ex-sexos' com prostitutas, orgias, jogo e muito vodka. Já não era também o pai de família, sublime escritor de alguns dos clássicos mais definitivos da literatura mundial. Próximo da última estação da sua vida é um velho idealista, cioso pela pureza, intolerante com os vícios depois de os ter cometido a todos. E nisto consiste a sua maior tragédia. Renegar a violência depois de a ter praticado na guerra e sobre os subalternos. Repugnar-lhe a carne, depois de passar por faustosos banquetes. Pregar a abstinência sexual, depois de ter tido 13 filhos (mais um, que se saiba, fora do casamento) e todo um histórico de turbulências amorosas. Abdicar da riqueza depois de a ter usufruído durante a vida toda - e atenção que os padrões da nobreza russa não têm qualquer paralelo, em opulência e autoridade, com os da aristocracia ocidental. Este é outro Tolstoi. O Tolstoi que já não se interessa por romances, mas tão idealista quanto incoerente, tão sentimentalista quanto naif, tão velho quanto confuso, cheio de conflitos existenciais, numa guerra (sem paz) interior."






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* Ana Margarida de Carvalho, é jornalista e escreveu este texto em 2009, quando do lançamento do filme "A última estação", do diretor Michael Hoffmamn, com os soberbos atores Christopher Plummer e Helen Mirren, além de James McAvoy e Paul Giamatti. Não vi o filme, mas o texto fez-me lembrar de outro senhor. Também escritor, também genial, também "cantor de sua terra", também reconhecido em vida por seu imenso talento, também generoso, também excêntrico, mas muitíssimo simpático: Mário Quintana. E é de Mário esse poeminha lindo que trouxe pra cá, uma visão ingênua, praticamente infantil da morte de Leon Tolstoi:

Poema da Gare de Astapovo

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!

E então a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...

Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

...

** continuo pensando nestes dois - TolstoiQuintana. Em suas diferenças. E nas razões para tais... Quem vai saber? Só posso imaginar que existam mesmo motivos que desconheço para que uma pessoa nasça em tal latitude geográfica. Ou seja, não é de graça que um indivíduo calhe de 'estrear' em terras tão duras e frias como a Rússia. Como também não é fortuito que se nasça no Brasil... alguma leveza deve se ter, não? Mas temo que a maior diferença entre os dois tenha sido mesmo o casamento e os filhos. Quintana morreu solteirão e sem herdeiros. E isto cria uma dimensão redbulliana à vida - te dá asas!

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