sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Vem serenidade, para perto de mim



[...]

Vem serenidade,
e faz que não fiquemos doentes, só de ver
que a beleza não nasce dia a dia na terra.
Reúne os pedaços dos espelhos partidos,
e não cedas demais ao vislumbre de vermos
a nossa idade exata.

Dá asas ao peso
da melancolia,
e põe ordem no caos e carne nos espectros,
ensina aos suicidas a volúpia do baile,
enfeitiça os corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome.

Serenidade, assiste
à multiplicação original do mundo:
um manto terníssimo de espuma,
um ninho de corais, de limos, de cabelos,
um universo de algas despidas e retráteis,
um polvo de ternura deliciosa e fresca.

Vem, com teu frio esquecimento,
com a tua alucinante e alucinada mão,
põe, no religioso ofício da vida,
a alegria, a fé, os milagres, a luz!

Vem, e defende-me
da traição dos encontros,
do engano na presença d'Aquele
cuja palavra é silêncio,
cujo corpo é de ar,
cujo amor é demais
absoluto e eterno
para ser meu, que o amo.

Para sempre irreal,
para sempre obscena,
para sempre inocente
Serenidade, és minha.


Raul de Carvalho, [trecho de] Serenidade és Minha, 1955



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